Existe uma janela de oportunidade para o desenvolvimento do Brasil: a tecnologia. Dizer que as transformações mundiais são cada vez mais rápidas e disruptivas já soa clichê, especialmente quando projetamos na memória o Vale do Silício, China e Israel – regiões com especificidades radicalmente diferentes quando comparadas. O detalhe crucial que muitas vezes passa despercebido é a profissão comum aos indivíduos na trincheira dessa revolução: os cientistas da computação. Está nas mãos desses profissionais o poder de desenvolver soluções inovadoras que impactam positivamente a sociedade. Eles são capazes de programar o futuro que queremos ou o que ainda não cogitamos. Por isso, tornam-se peças-chave valiosas para qualquer nação.
Pode ser enigmático mensurar como algoritmos têm o poder de mudar rumos – de pessoas, de organizações, de empresas, do país. Mas evidências são cada vez mais comuns. O país já conta com cerca de 12,7 mil startups, segundo a Associação Brasileira de Startups (ABStartups), sendo doze unicórnios (aquelas com valor de mercado superior a US$ 1 bilhão): 99, PagSeguro, Nubank, iFood, Stone, Arco Educação, Gympass, Loggi, Quinto Andar, Ebanx, Wildlife e Loft. A poderosa China não tem escondido o seu interesse estratégico no mercado brasileiro. A Didi Chuxing comprou a 99; a gigante Tencent realizou aporte no Nubank. O japonês Softbank anunciou um fundo de 2 bilhões de dólares para investimentos em startups da América Latina.
A janela de oportunidades está se abrindo e já permite vislumbrar aonde podemos chegar. O que falta ao Brasil para que esses unicórnios e startups possam se consolidar, transformando definitivamente a economia brasileira como aconteceu em outros países? “Capital humano”, destaca Davi Reis, 39 anos, engenheiro que trabalhou na Google Belo Horizonte por 10 anos, empreendedor que criou sua própria empresa e a vendeu três anos mais tarde. Hoje, Reis também é investidor-anjo nos grupos AB Capital e Canary, além de líder da engenharia (CTO) da startup de logística Loggi, criada há pouco mais de 5 anos e já avaliada em mais de 1 bilhão de dólares.
A Associação Brasileira de Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (Brasscom) estima que o país demandará uma média de 70 mil profissionais qualificados ao ano até 2024 – uma soma de 420 mil. Entretanto, o Brasil forma 46 mil, o que resultará em um déficit de 276 mil no período. Hoje, o setor emprega cerca de 850 mil pessoas.
Acreditando que a tecnologia é uma janela para um futuro melhor, Reis se uniu a outros profissionais que conheceu ao longo de sua trajetória para desbravar a construção de um caminho que acredita ter o poder de mudar o país. Juntos, se debruçam na formação de times de profissionais de alta performance, aliando a formação científica das universidades com a experiência na indústria.
“Os cientistas da computação serão protagonistas dessa era e os países que não conseguirem formar e reter esses profissionais ficarão para trás”, afirma. “No Vale do silício um estagiário pode chegar a ganhar, por causa da alta do dólar, meio milhão de reais ao ano. Além da questão financeira, os profissionais de alta performance querem trabalhar com os melhores e, no Brasil, há poucos lugares que valorizam ter vários profissionais de alto nível.”
A ideia de Reis é acessar as fontes de talento nos estados brasileiros, especialmente fora do Sudeste, e conectá-las às empresas que estão revolucionando o cenário de inovação e tecnologia no país. Ao passo que conduz um projeto de formação na Loggi, ele está ativando universidades no Amazonas, Mato Grosso, Brasília e Santa Catarina, entre outras localidades. “Visitaremos pelo menos dez universidades e seus ecossistemas e vamos trazer todos aqueles com paixão por aprender, ensinar e construir através da tecnologia para trabalhar conosco”, afirma.
Ele acredita que instituições acadêmicas e iniciativas privadas podem ser complementares e usar a tecnologia para, mais do que transformar negócios, impactar massivamente a população. E se os escritórios instalados nos grandes centros querem alcançar toda a sociedade brasileira, isso quer dizer que a sociedade brasileira, com toda sua diversidade, precisa estar representada no time das empresas.
O que torna crível a possibilidade de cientistas da computação aproveitarem a janela da tecnologia para programarem novos futuros para o país? Conhecer a história profissional que Reis construiu pode servir de exemplo.
Reis foi um dos pioneiros na expansão da Google no Brasil. Se você já “deu um Google” para encontrar um restaurante, pode agradecê-lo. Entre outros projetos de ponta, ele concebeu a Google Pigeon, o mecanismo de busca local mais avançado do mundo, e liderou o time de execução em Belo Horizonte, Mountain View, Nova York e Zurich.
Levou essa experiência para o universo das startups ao criar, em 2015, a sua própria, a WorldSense, junto com Diego Nogueira, outro xoogler (apelido dado a ex-funcionários da Google). A startup dos dois usava machine learning (aprendizado de máquina) para tornar a publicidade on-line menos invasiva ao inseri-la dentro de textos relacionados ao anunciante. O seu primeiro endereço foi no old.guaja.cc, quando o coworking ainda funcionava na Rua Guajajaras, no Centro de BH.
A Loggi adquiriu a WorldSense, em 2018, com o objetivo de contratar Reis. Foi feito então um acordo para a contratação de todos os talentos da sua startup — uma operação conhecida por “acqui-hiring” e inédita entre empresas brasileiras.
A história por trás da vinda da Google para Belo Horizonte
Reconhecido por sua visão arrojada e inovadora em produtos e algoritmos originais, Davi Reis, líder da engenharia (CTO) da unicórnio Loggi, também é colecionador de histórias no mínimo peculiares, que impactaram transformações significativas para o país, como a vinda da Google para Belo Horizonte — o que o torna um personagem excêntrico e popular do universo da tecnologia, dos nerds aos mais formais.
Em 2004, ele conseguiu o feito de ter um artigo científico aprovado na conferência WWW, uma das mais importantes da área, em Nova York. Lá, apresentou para os nomes mais influentes do mundo o seu algoritmo RTDM, sobre a extração automatizada de notícias da web — trabalho que amealhou citações em centenas de artigos de outros pesquisadores e iniciou uma nova área de pesquisa em mineração de dados da web. Outro brasileiro no grupo de pesquisadores presentes era Cristiano Rocha, na época estudante da PUC-RJ e hoje sócio-fundador da BizCapital, startup que oferece empréstimos para capital de giro para micro e pequenas empresas.
Ambos “bom de copo”, depois da conferência, Davi e Cristiano seguiram para uma festa promovida pela Google. Saideira pós saideira, os dois foram os últimos a deixar o local, junto com Wayne Rosing, na época um dos principais executivos da Google (ainda que não soubessem) e hoje membro titular do departamento de ciências matemática e física da Universidade da Califórnia. Rosing perguntou sobre mecanismo de busca no Brasil, e Cristiano respondeu que o melhor do país era o TodoBR, desenvolvido pela Akwan Information Technologies, dos professores Nívio Ziviani e Berthier Ribeiro-Neto, da Universidade Federal de Minas Gerais, justamente onde Reis trabalhava. Conversa essa que foi retomada quase um ano mais tarde, em Belo Horizonte.
É nas instalações da Akwan, já em 2005, que a história de Nova York foi retomada. A pequena equipe foi convidada para um encontro com possíveis investidores de um fundo, algo pouco usual. No momento oficial de apresentação, mais uma vez ficaram cara a cara Reis e Wayne Rosing, e uma situação inusitada se criou. Após os cumprimentos iniciais, o jovem Davi chamou seus diretores em um canto reservado para revelar que “estavam tentando enganá-los, pois aquelas pessoas não eram de fundo algum, e sim funcionários da Google que deveriam estar ali com alguma missão secreta”. E era exatamente o que estava acontecendo, apenas com o detalhe que tudo tinha anuência dos diretores, que haviam concordado com a exigência de um termo de confidencialidade (NDA) para aquela visita. Os advogados americanos, no entanto, nunca imaginaram que ele seria inútil pois o funcionário daquela pequena empresa mineira conhecia pessoalmente seus enviados.
Quando se esclareceu tudo, deixou-se de lado a burocracia e a formalidade, de quem já havia passado a noite conversando em Nova York — e as negociações aceleradas. Meses depois, todos os funcionários precisaram assinar novos contratos para participar do que seria o primeiro escritório de engenharia da Google fora dos Estados Unidos. Reis, de férias em Cuba, assinou por lá. E acendeu um charuto para celebrar.
Berthier Ribeiro-Neto segue como diretor do centro de tecnologia da Google da América Latina, sediado em Belo Horizonte. Além de autor do livro referência mundial em mecanismos de busca usado nas melhores universidades do mundo, Berthier é um entendedor nato de pessoas e formador de várias lideranças da área no país, incluindo o próprio Davi. Ziviani fundou a Kunumi, especializada em inteligência artificial.
Reis acredita que nos próximos anos haverá muito mais histórias como essa. Como ele gosta de dizer em seus encontros com estudantes, cada era pode ser definida por uma atividade de destaque. Ele enxerga, nesta transição da era industrial para a digital, o cientista da computação como um agente revolucionário da história da humanidade. “No paleolítico, indivíduos exímios em polir pedras e caçar tinham grande vantagens competitivas. Oratória, erudição e habilidade política foram as habilidades nos períodos em que a igreja cumpria o papel do Estado. Durante as grandes navegações, aqueles que dominavam a bússola, o timão e as paixões das tripulações definiram os rumos da história. No período em que vivemos, o “bilhete premiado” está nas mãos de quem se aventura no mundo de bits e bytes”, destaca.
*Reportagem de Paola Carvalho originalmente publicada no jornal Estado de Minas, posteriormente adaptada para o guaja.cc e finalmente reproduzida aqui.