Este ano criei um método para revisitar um pouco das minhas leituras, deixando em uma pilha dedicada os livros já lidos, e só os retirando depois de fazer uma pequena resenha. Funcionou mais ou menos, e decidi coletar aqui algumas das obras. Segue.


A Amiga Genial

Primeiro livro da série napolitana. No natal passado dei de presente para várias mulheres, amigas e familiares, mas eu mesmo só conhecia a história através da minha esposa. Muito legal a dinâmica que Elena Ferrante confere à narradora, Lenu, e sua amiga, Lila. Personagens verossímeis, com seus tons de cinza morais e conflitos internos. Além do desabrochar da própria Lenu e sua amiga, o caráter distintivo do livro é quão bem ele retrata o ambiente ao redor delas. Em particular, os aspectos da violência do universo masculino estão bem capturados, e ao ler fiquei me perguntando se já li algo que mostrasse tão bem a toxicidade desse universo demonstrado da perspectiva masculina, de vítima e perpetrante.

O morro dos ventos uivantes

Um clássico da literatura que na minha opinião não envelheceu bem. Os personagens são caricatos, e o papel de Catherine é tão anacrônico, que é difícil desenvolver a empatia com a personagem que imagino que a autora tenha buscado. Imagino que Emily Brontuë tenha sido uma das primeiras a capturar aspectos do universo feminino, e certamente foi uma das primeiras mulheres a se posicionar como autora de renome, mas no final ela cristalizou tanto das visões do seu próprio período que a leitura sob a ótica atual não funciona sequer como uma viagem no tempo, parece apenas pueril.

O Livro dos Títulos

Excelente livro de estréia de Pedro Cardoso. Um enredo bem costurado, conectado ao momento político do país, e com personagens muito empáticos. Gostei de tudo, mas valeria a leitura mesmo que só para conhecer a história dos Whatsapp. Curto e descontraído, recomendo inclusive para quem não tem muito hábito de ler.


Gödel’s Proof

Fascinante. A formulação da representação das provas como primos e o espelhamento da meta-matemática dentro do Principia Mathematica para gerar a contradição são as partes mais interessantes. Mais uma vez o problema do infinito se manifesta. O truque dos primos lembra as técnicas com cara de discreta do wolfram e seus programinhas. Como seria a prova sem esse expediente? A idéia leva à conclusão de Wittgenstein que nada pode se afirmar sobre todas as maçãs? A noção de conjunto é uma ilusão do infinito? Ou seja, também precisamos de meta-filosofia para falar do universo? E sofremos então da mesma contradição?

The Dark Forest

Segundo volume da série de Cixin Liu que é leitura obrigação para nerds atualmente. Assim como o primeiro livro, tem seus altos e baixos. O ponto alto é a imaginatividade bem ao estilo Asimov (e até muito próximo da série Fundação e sua sociocosmologia), e como ela permite um fechamento surpreendente da trama. O ponto baixo, assim como no livro anterior, são os momentos de longas narrativas ao estilo Dan Brown onde você se sente cumprindo tarefas junto com os personagens. Poderia ser um livro menor, como foram os do Asimov, sem prejuízo à história. Ao largo disso, a obra é um alívio à visão us-centric do mundo (sem intenção de pum), e é interessante ver os personagens orientais em papéis protagonistas, e as referências à cultura chinesa como componente formador desses personagens.

The Calculus Story

Uma breve história do cálculo diferencial, muito bem organizada e balanceada. David Acheson combina uma exposição matemática acessível, mais ainda assim rica, com um pouco da biografia dos personagens que contribuíram para as descobertas (ou invenções), do que eu diria foi o mais impactante instrumento científico no progresso tecnológico da história da humanidade (após, obviamente, o próprio método científico). E essa edição ainda não lembrou de incluir um capítulo sobre deep learning e gradient descent, atuais condutores da recente revolução em inteligência artificial e fortemente ancorados nas técnicas descritas no livro. Muito curioso descobrir que Newton e Halley foram colegas, e entender o mistério da Curva Brachistochrone, que coincidentemente eu havia conhecido poucos meses antes no Museu Galileo em Florença.


Akira

Já havia lido a versão em inglês há muitos anos, mas apenas os primeiros volumes, e não lembrava bem. A versão remasterizada em português ficou ótima, e embora mangá não seja muito a minha praia, valeu a leitura. O ritmo veloz da ação funciona muito bem, e os personagens todos um pouco infantis, como se vê em alguns quadrinhos japoneses, encaixam na história. Infelizmente parece que o segundo volume não será editado tão cedo.

Adendo: quando o ano já estava para acabar, eis que a JBC nos brinda com o volume 2 da série. A ação continua eletrizante e os personagens vão crescendo em complexidade. Mais uma leitura com influência das bombas atômicas em nosso imaginário e história. Aguardando ansioso pelo próximo volume.

Ayako

Do mais famoso cartunista japonês, uma fascinante história que se inicia mostrando a crueldade e derrocada da sociedade patriarcal japonesa, atravessa o período de reconstrução forçada das estruturas da sociedade ante a ocupação americana, e termina em ritmo de thriller, com um nível de eletricidade que vi pouquíssimas vezes. Uma obra prima como poucas. Osamu Tezuka gostaria de ter escrito os Irmãos Karamazov em quadrinhos, mas confesso que adorei o corte abrupto que realidades editoriais o obrigaram a adotar.

Spiral into Horror

Um mangá do brilhante Junji Ito, uma obra sensacional para fãs do gênero do horror. Os contos se desenvolvem em um ritmo muito bem construído, passando do plausível para o grotesco, do universo privado para o social, e culminando em um fechamento sublime. Especial destaque para a linha de enredo dos caramujos, e obviamente para a fantástica costura de tudo no magnético e assustador conceito de espiral.


War is Boring

Com pequenas lições de geografia, e capaz de transmitir um pouco da vivência real de regiões de conflitos, uma leitura que vale a pena. Destaque para o componente do incompatibilização do autor à vida pacata após suas várias excursões, e algumas pérolas das regiões devastadas, como o americano que se muda para as zonas de conflitos para poder violar todas as leis, ou as crianças somali que gritam “gaaalo”.

Suspended in Language

Biografia em quadrinhos de Niels Bohrs. A execução não é tão boa quanto a biografia em quadrinho de Feymann, e certamente não tão provocativa quanto Logicomix. Mas essas três obras se encontram no terrível momento da humanidade que foi o projeto Manhattan, e é fascinante ver como os mais diversos personagens da época tiveram trajetórias extraordinárias e eventualmente se cruzaram ali. Vale para conhecer a escola de JJ Thompson como a fundação da física como disciplina, e seu tremendo legado, e para acompanhar a dança entre Bohrs, o terceiro dessa geração, e Einstein, o outsider que revolucionou nosso entendimento do universo, e no fim foi superado pela visão quântica de Borhs (ou não).

Olympee de Gouges

Fascinante história de uma mulher a frente de seu tempo. De sua viúvez precoce Olympee, consolidou-se como uma mulher livre das amarras sociais. Da liberdade, construiu-se como protagonista social, e daí ascendeu para condição de teatróloga, autora e finalmente a voz da consciência social da frança revolucionária. Como todos, sofreu quando o terror tomou e lugar da luz, e como vários, resistiu apesar dos riscos. A narrativa começa um pouco lenta, mas toma ritmo, sobrepondo a história da frança e da pequena comunidade intelectual, onde estavam Olympee, Rousseau, Voltaire e outros, com o amadurecimento da personagem. Vale a pena superar o desencanto inicial com a obra para chegar até o final.


O Poder do Hábito

O tradicional livro empresarial. O formato clássico apresenta várias histórias palatáveis que sustentam, talvez excessivamente, a tese do autor. Na falta do contraditório, não vale muito como ciência, mas cada uma das parábolas é grudenta e divertida o suficiente para entreter as conversas de muitas refeições. Tenho usado muito a do Pepsodent.

Originals

Adam Grant recorre à fórmula usual das historietas com uma mensagem em comum. Bem escrito, e traz um ponto interessante sobre apostas múltiplas e controle de riscos, distinto da narrativa usual do empreendedor suicida. Acho também interessante a perspectiva de como os hobbies e atividades fora do centro profissional frequentemente podem ser uma fonte de inspiração para inovação.

How to Build a Memory Palace

O livro apresenta a técnica usada por memorizadores de alto calibre, e como eles as usam em diversos contextos, em particular competições de memória. Não é claro para mim se realmente pode ser útil fora de um contexto artificial, mas certamente é divertido ver que a técnica funciona para truques de memorização. O exercício de navegar seus palácios de memória também é prazeroso e surpreendente. Comprei só por curiosidade, mas valeu o tempo investido.