Parte de uma cidade do interior, e pega uma estrada errada. A primeira parada é uma cidade pobre. Embarca uma retirante. A segunda é ainda mais estranha. Uma família que esconde um de seus filhos.
Essa é uma história de um sonho. Construída na magia da noite, vívida em seus detalhes, e relatada das névoas da lembrança.
O fim de uma semana de trabalho. À frente do computador, corpo sujo, mente exausta. Levanta-se, olha rapidamente ao seu redor e se vai. Não se despede mais de seus colegas como nos primeiros anos. De curiosos estranhos passaram a conhecidos intímos e finalmente ilustres sombras do dia a dia. No elevador aperta o botão da garagem e desce em silêncio, sem pensamentos. Seu carro não é um modelo econômico. Tampouco um carro de luxo, mas sua vida não é luxuosa também. Abre a porta, gira a chave e segue. Caminho da roça.
Há anos todas as sextas-feiras, busca seu descanso merecido. O trânsito lhe irrita. Possivelmente por obrigação, pois há muito não tem vontade de se irritar ou se alegrar. Logo chega à estrada, familiar e reconchegante. Ou entediante. Não saber dizer bem. O sinal amarelo é um regozijo. Um pouco de emoção. No radar blasfema mecanicamente em seu intímo contra os companheiros de estrada que exageram na redução.
Fim do asfalto, vira à direita. Vira à esquerda, segue por uma hora. Os veículos tornam-se mais raros. A cada som de motor procura por um trecho mais largo e se move para direita. Ensaiam um balé automotivo, cada veículo se imprensando em um canto, evitando que seu corpos se toquem, e desejando estar o mais próximo possíveis. O último deles era tão velho quanto a paisagem a sua volta.
A estrada parecia mais rústica que o usual. Por meia hora sua companhia são buracos e pedras. Às vezes ambos. A poeira sobre o carro camufla-o na paisagem, envelhecendo-o tanto quanto o interior do homem que o guia. Quase não há mais vegetação ao seu redor. O acre da pista toma conta da sua visão.
Surgem as primeiras casas. São casas de janelas grandes e portas pequenas. Não há cercas ou muros as separando, apenas mato rasteiro e objetos domésticos, incomuns ao relento. Desliga o automóvel. A sua frente está um bar. A portinhola está aberta, mostrando um cômodo único, estreito. Há linguiças na parede e doces de marzipã sob um mostruário de vidro. Um homem está sentado em um banco alto de madeira atrás do balcão, dividindo o pequeno espaço com uma geladeira azul.
Com uma garrafa e um copo de massa de tomate ele se senta em uma mesa corroída do lado fora. Sua cerveja contrasta com a aguardente sem rótulo da mesa ao lado. Leva a mão ao rosto e sente a barba a fazer. Estranha o suor de seu rosto e ergue a cabeça. Seus olhos não suportam a luz do sol. De cocóras, o homem na casa a frente continua a fumar um cigarro de palha. A fumaça não lhe diz nada.
À distância, vê finalmente a mulher chegar. Seu irmão a acompanha. O marrom do minério dá cor ao seu rosto e à terra que ela pisa. Ali não há mais esperança. Vive-se de lembranças e cachaça. É hora de seguir adiante, carros de boi e dignidade. É hora de seguir adiando, os sonhos do progresso e a passagem dos dias.
O automóvel se recusa a ligar. A carga excessiva de seus dois companheiros e suas ferramentas parece pesar. Gira mais uma vez a chave, sustentando-a até ouvir os estertores do motor. Agora, sem freio, o carro desce. Sincronizado, atrasa sua mão direita e reduz a pressão em sua perna. Lhe fascina pensar que não precisou pensar. Nos recônditos de seu cérebro habitam habilidades misteriosas. Um autômato controla seus membros sem o árbitrio de sua mente azia.
O sulco guia seu caminho. A esquerda um tatu estraçalhado quer lhe dizer algo. Suas entranhas transbordam entre as rachaduras do casco. Param e a mulher desmonta para recolhê-lo. A carne dará a criança boa visão noturna e do que resta do casco há de se fazer bela cabaça.
Dali já pode-se avistar a casa. Ao longo do arame, percebe a ferrugem comendo o metal. Suas mãos o tocam e enchem-se com o pó cor de sangue. Passa a tronqueira e segue seu caminho. A casa ergue-se à sua frente, imponente em sua decadência. Ninguém à varanda. O barulho do chafudar leva seu olhar à direita. No meio da porqueira ergue-se o tronco. Um dos porcos olha sua pele negra. Seu focinho está coberto de uma gosma reluzente. Ele estranha a ausência do bafo e da respiração resfolegante do animal.
Dentro da casa, a mesa está posta. Seus frágeis músculos se tensionam ao arrastar a pesada cadeira. O estanho dos talheres se mistura ao sabor da comida, proporcionando estranha sensação de conforto. A voz retardada do outro filho do irmão pedia comida. O pai ralha e a mulher se levanta resignada, e, com um prato na mão, se torna uma silhueta nas sombras dos comôdos internos. Agacha-se levemente e inclina o prato, raspando-o com a colher. A comida é rapidamente recolhida por mãos desajeitadas. O som primitivo de mastigação sobrepõe-se ao silêncio da mesa.
Após o quilo põe-se a caminhar pela trilha atrás da casa. O crepúsculo se aproxima e as últimas luzes do sol morrem entre as rugas de seu braço. Não há suor senão aquele já encrustrado em sua camisa encardida. Grilos e sapos se alternam em cortejo à sua passagem. Ao longe avista a luz trepidante. Os caçadores estão sentados ao redor do fogo, com trabucos às suas costas. Posta-se ao lado do mais velho, capitão. Sua pele é suja, rajada de rugas vermelhas e cortes de capim. O homem exibe seu poucos e disformes dentes enquanto ele lhe indica o trajeto que deverão seguir. Seu caminho é outro, e sua jornada se aproxima do fim.
Um deles o acompanha, abrindo o mato com um facão. Uma clareira surge, e seus pés sentem a maciez da terra úmida. Ele não tem mais forças para trabalhar com a pá, e deixa ao outro o trabalho de escavar, enquanto ajusta a perderneira, com suas mãos grandes e ásperas. Findada a perfuração, ele devolve a arma a seu dono e prostra-se em seu jazigo. A terra atinge primeiro seu rosto e preenche sua boca.
Ele se lembra dos seus dedos comandando o teclado e dos sinais de trânsito. Do vazio da estrada e dos olhos do homem que bebia pinga, entrecortados de derrames e vazios de desejo. Da pobreza da mulher e das mãos da criança buscando comida do chão. Vê seu rosto contra o tronco e sente a lambida do porco limpando o sangue de seus pés. Lembra-se dos homens ignorantes portadores da morte. Sua paz é interrompida quando em sua mente passa novamente as marchas do veículo. Ensaia um movimento de seu braço, ao que ouve o estrondo da garrucha. O calor em sua barriga lhe traz novamente conforto e os últimos fachos de luz se esvaem.
Naquela sexta ele viajou duzentos anos ignorando e traindo, esquecendo e se apartando. Na borda do mundo encontrou finalmente seu descanso merecido.